Ao correr da pena sobre o Brasil



Algumas notas soltas enquanto aguardo a confirmação de que o fascismo regressou às terras do Brasil.
O que ali se passa e as consequências que advirão diz-nos respeito a todos e não vejo nisso, ao contrário do que hoje sugere Seixas da Costa, qualquer resquício de neocolonialismo.
A razão de ser da votação maioritária num evidente populista de extrema direita teremos que a procurar compreender a partir das condições concretas da vida dos brasileiros.
Especulações 'filosóficas' sobre a atratibilidade das ideias em presença, sobre as linguagens utilizadas ou sobre os 'casos' que pontuaram o confronto eleitoral de pouco adiantam. Milhões de brasileiros estão a votar essencialmente com base na sua experiência de vida pois, como diria Boff , "a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam".

O povo do Brasil, nos seus diversos grupos sociais, vive mal (pobreza, desigualdade, habitação, violência). Mesmo as camadas intermédias, ainda que tendo condições de vida bastante melhores que a generalidade dos seus concidadãos, têm razões de queixa (saúde, segurança, educação,segurança social) e entendem que não só estão muito aquém do que desejam mas, também, que o Brasil tem enormes condições de desenvolvimento nunca cumpridas.
Havendo um candidato  (Bolsonaro) que é apresentado como o protagonista da (de A) mudança é compreensível que ele esteja em melhores condições para ter o apoio eleitoral da maioria dos cidadãos.
Esta substantivação da mudança é uma das armadilhas engendradas pelo neoliberalismo que, uma vez mais, surte efeito. Faz-se por omitir que "A mudança" é uma falácia porquanto qualquer mudança tem um sentido e um conteúdo que é o que verdadeiramente importa. O que existe é "mudar para" qualquer coisa, que pode ser melhor ou pior. "A mudança" por si só não é nada ainda que seja apresentada como uma promessa, aliciante sobretudo para quem se sente mal.
É verdade que os governos do PT fizeram muito para melhorar as condições de vida de milhões de brasileiros. Mas a realidade é que, por impossibilidade ou por hesitação, não avançaram tanto nesses progressos quanto seria necessário. Pior, o PT, a partir de determinada fase, passou a ser percecionado mais como um gestor dos interesses minoritários instalados do que como um representante dos interesse populares e promotor das reformas sociais necessárias.
Uma democracia que não avança na concretização dos direitos e aspirações sociais da maioria é uma presa fácil da demagogia dos seus inimigos.

Os processo utilizados pelo fascismo brasileiro para capitalizar os descontentamentos existentes são há muito conhecidos ainda que agora possam ser servidos com inovações tecnológicas.

Dois traços são evidentes: (i) a utilização linear dos fatores de descontentamento contra os seus pretensos autores (os governos PT) escamoteando as suas causas reais reais e profundas num país colonizado ('dependente' diria em tempos JHC) pelos interesses norteamericanos e por uma grande burguesia nacional serventuária; (ii) a omissão da desigualdade e dos baixos salários como elementos estruturantes do não-desenvolvimento com todas as suas consequências.

Mas a manipulação das massas populares tem outros, velhos, ingredientes.
O anticomunismo desde as suas formas mais primárias  e idiotas (os 'crimes' soviéticos, o antirreligiosismo vermelho, o antipatriotismo, o tendencial banditismo) até outras acusações mais atualizadas ( a 'dissolução dos costumes e da boa moral', a exaltação das minorias e dos imigrantes em detrimento da maioria, a acomodação às injustiças existentes) foi, uma vez mais, adotado como ferramenta essencial para a promoção do fascismo.
A utilização de uma propaganda essencialmente assente em premissas simplistas e na na manipulação emocional. Desse ponto de vista o profissionalismo da poderosa máquina posta ao serviço do fascismo brasileiro foi notável. Desde a fabricação regular de 'casos' contra Haddad (o 'kit gay', a apropriação das crianças pelo Estado, a falcatrua eleitoral) até à produção constante de imagens e 'soudbites' para uso nas redes digitais todos os ingredientes de 'marketing' foram utilizados.
A exaltação da irracionalidade e da violência a par da fuga à argumentação fundamentada e ao debate constituíram também instrumentos poderosos neste ascenso do fascismo.


Deste processo, acompanhado à distância mas como muita preocupação, retenho três tópicos para reflexão.
O primeiro, a comprovação de que se as forças do progresso não são perseverantes e ousadas na construção desse progresso (obviamente o progresso só o é se for em benefício da maioria e da inclusão de diversas minorias oprimidas) as forças do retrocesso rapidamente retomarão os caminhos úteis aos privilégios da minoria exploradora.
O segundo, que há questões que merecem ser estudadas e, sobretudo, respondidas com determinação e inovação por parte de quem defende a democracia e a justiça social. Entre outras destaco o combate à corrupção e a salvaguarda da segurança. Sendo dois temas que a extrema direita brasileira soube utilizar, só por manifesta desatenção não se reconhecerá a sua importância em Portugal e o aproveitamento que deles  o fascismo luso está a ensaiar.
O terceiro, a inutilidade das expectativas quanto ao papel dos 'democratas hesitantes' na obstaculização da extrema direita. Fernando Henrique Cardoso mas também Ciro Gomes são dois exemplos muito tristes do papel que cabe aos representantes dos ideários de cedência ao neoliberalismo. Objetivamente ambos preferiram o ascenso do fascismo ao triunfo do antifascismo na presunção de que numa futura  mobilização pela recuperação da democracia voltariam a ter espaço político e pessoal de manobra ainda que, entretanto, isso custe o duríssimo sofrimento de muitos.

A agora José ? (*)

Estas notas soltas não são mais do que apontamentos provisórios para reflexão (e ação!).

(*)
JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais!
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade





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